BARATA-VOA

Minha querida filha, quanto tempo que não nos vemos, não é? Queria que soubesse, você é a minha filha mais querida! Quando tive a minha primeira postura de ovos, sem dúvida que foi você  a minha preferida naquele grupo de tantas irmãzinhas suas!  Puxa, parece que foi ontem. Mas não, isso aconteceu há mais de 8 meses! Ah você, que ser sublime e tão perfeito, que privilégio ser sua mãe!  Ainda te vejo despontando agitada do seu ovinho, tão vivaz e farfalhante. Aliás, naquela ocasião vocês aprontaram uma farra daquelas,  porque a metade das suas irmãs resolveu eclodir ao mesmo tempo. Como você era formosa, era realmente uma belezura!

Alguns meses depois, você veio me contar sobre  a sua primeira experiência de voo, um feito muito ensaiado e marcante para você. Seu sentimento de orgulho ao se dar conta que podia voar! Também  me falou do seu aparecimento repentino na enorme sala de um apartamento burguês, a residência de gente notável e muito rica. Todos aqueles humanos assistiam como que hipnotizados a um jogo de futebol, talvez da seleção, num gigantesco aparelho de TV quase do tamanho da parede.  Quando perceberam sua presença, deu-se o alarme: barata tonta,  barata-voa! Uma grande agitação se instalou, seguida de uma gritaria sem tamanho. Tinha gente trepada até em cadeiras, muito esquecida que você não era um ratinho, que você podia alcançar qualquer um dali, mesmo que no alto. Você não esperava tamanho alvoroço, e só por causa de um minúsculo e desprezível  inseto! Era mesmo muita gente ali reunida: desde a matriarca e o patriarca,  filhos crescidos, os filhos deles e ainda diversos agregados. 

Imediatamente, começaram a te perseguir, munidos de assustadores chinelos em riste! Com o passar do tempo, logo você percebeu que o sentimento reinante passou de medo ao ódio e do ódio a uma sanha difusa e incontrolável em te ver derrotada, o quanto antes! Sim, todos estavam convictos de que era preciso, era sim obrigatório te ver caída, estraçalhada, esmagada  e ridiculamente emborcada num canto qualquer daquela casa.  Mas você continuou voando e voando, até se exibindo, e também se esquivando heroicamente daquela saraivada de chineladas.  Até que você escapou vitoriosa, planando abaixo pelo fosso de ventilação do edifício.

Quanto tempo até eu  me  encontrar aqui e agora, já burra velha, sem saber desse fato, que temos essa capacidade de voar. Será porque ninguém me informou ou eu não percebi, tonta que sou (mais outra tonta?). Vim a saber que essa capacidade de voar  é relativamente comum entre nós. Enfim, já devidamente informada, não canso de me admirar por esse milagre. Já imaginou se todas as baratas voassem? Já imaginou se todas as nossas irmãs se conscientizassem a respeito dessa maravilhosa habilidade? Fiquei visualizando aqui todas nós, saindo de tantas frestas e bueiros,  voando ao mesmo tempo, coalhando o ar de gigantescas nuvens amarronzadas em todos quadrantes do país, nas casas, igrejas, supermercados e parques, nós aos montes, com os seres humanos escandalizados,  atarantados, baratinados (epa!) conosco em pleno voo. Não é uma autêntica visão de um filme catástrofe?

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