“O RESTAURANTE R.”

Ah, o restaurante R! Ele era o meu predileto,  quase o único que eu frequentava. É certo que num certo ponto fiquei bastante perturbado com o incidente da “multiplicação dos peixes”, um acontecido bastante estranho,  comento sobre isso mais adiante. Eu ia lá um tanto obsessivamente, confesso.  Apesar de  haver vários restaurantes na cidade, ele era para mim o único, o absolutamente top.  Localizado na parte mais alta do centro, no topo de uma pequena colina, em meio a um interessante e extenso arvoredo.  Na área livre atrás do restaurante  existia um lago e um parquinho, que era muito bom para as brincadeiras das crianças. Por um tempo, o laguinho, que não era tão diminuto assim, ficou cheio de trutas, o proprietário teve a ideia de implantar ali um sistema de pesque e pague que foi um sucesso. Meses depois, perceberam que a atividade estava prejudicando o restaurante, já que muitos clientes se limitavam a  pescar e levar o pescado para casa, deixando de adentrar  o restaurante e de consumir os variados pratos constantes do cardápio.

A truta, por sinal, era também um ítem  oferecido no extenso cardápio. Havia uma impressionante lista de peixes, desde badejo, cherne, cação, lagosta, caranguejo, lagosta, simples sardinhas e até a popular manjubinha.  O restaurante se esgoelava, a bem dizer, em atender a todos, cada desejo era rigorosamente satisfeito. O estoque era completado à risca, nunca faltava qualquer espécie de peixe, questões de sazonalidade dos pescados eram desconhecidas ali.

Eu usava qualquer pretexto, até os minímos, para ir lá e comer aquela comida estupenda. Tinha a cada dia de semana apenas uma hora e pouco de intervalo no almoço para subir correndo aquela ladeira e me fartar daquela comida dos deuses. Cada almoço era uma experiência, comendo lá, quase não havia mais possibilidade de se consumir qualquer outra comida.  Além de agradável em si, o restaurante tinha uma vista espetacular da cidade. Guardo nitidamente na memória quase todas as experiências gastronômicas vividas por lá, aquelas carnes deliciosas, os temperos todos, os aromas, ah! O restaurante não era exatamente barato, e era aí que minhas as finanças ficavam um mês ou outro seriamente no vermelho por conta da alimentação cara.  Não me importava. 

Bom, agora o ponto mais alto deste relato. Foi realmente uma experiência bastante bizarra que eu tive nesse Restaurante R.  Marquei com uns amigos para comemorarmos meu aniversário, mas nenhum daqueles desalmados se dignou a aparecer. Não me importei, acabei ficando sozinho na mesa que reservei 4 dias antes, o restaurante  era extremamente concorrido. A comida era tão deliciosa, tão excepcional,  que foi melhor afinal saborear aquilo sozinho, precisava me concentrar! Nada de pensamentos paralelos e comezinhos, a grande rainha era ela, a comida do Restaurante R.  Não tinha almoçado  e praticamente não comi nada durante o dia inteiro, só uns dois biscoitos de água, isso para aumentar ainda mais o meu apetite. Diziam que em se tratando de frutos do mar, não havia igual num raio de uns cem quilômetros. Exagero ou não, acabei comprovando isso, era sério. Pronto, sentei-me sozinho e me preparei…. O maitre, seu nome vinha escrito numa plaquinha presa ao seu paletó, era o Sr. Leduc. Ele estava impecavelmente vestido, era um homem extremamente afável, por sinal. Veio, anotou meu pedido e se foi rumo à cozinha. Pedi  uma meia garrafa de vinho branco francês. Nada combinava melhor com aqueles pescados do que vinho branco, especialmente aqueles vindos da região da Alsácia.  Meu pedido era simples, uma posta de cherne ao forno acompanhada de purê de batatas.  Levou algum tempo para trazerem, mas eu tinha certeza de que uma certa demora fazia parte do clima, aguçava o apetite.  Quando o prato chegou, fui logo me apressando  em desfrutar daquela iguaria, peguei um pedaço e achei divino como ele tinha sido preparado, era fantástico! Porém, quando já ia terminando, percebi surpreso que vinha aparecendo uma outra posta embaixo da primeira! Era como uma passe de mágica, a carne  veio surgindo assim do nada, a mais recente era de badejo. Achei aquilo intrigante, era como um truque, um mimo da direção, algo inventado pelo Sr. Leduc para agradar o cliente, um cliente relativamente novo como eu? Seria um presente de aniversário? Pus-me  a comer a segunda posta, mas qual não foi a minha surpresa quando me apareceu uma outra embaixo. A terceira! Não deixei de comer, apesar de já estar bem saciado; fui adiante, não iria deixar de saborear aquela comida maravilhosa, mesmo que em quantidade simplesmente exagerada. O fenômeno  foi se renovando. O que significaria afinal esse repetir indefinido de pescados um embaixo do outro?  Será que havia um mecanismo sob a mesa que catapultava posta atrás de posta? Já ouvi dizer que uma porção comum de pescado, numa refeição, importa em umas 200 gramas. Ali, naquele momento, eu já teria passado das 800 gramas, fácil fácil.  Já estava me sentindo empachado, entupido de peixe até a tampa, já que havia desistido do purê para deixar mais espaço na minha barriga para a carne. Continuei, até meio sôfrego, tentando dar  cabo daquela iguaria que ia se repetindo indefinidamente. Era irresistível, comia e comia, no afã de aproveitar ao máximo do peixe. Será que eu estaria  metido num sonho? Eu me belisquei e notei  que aquilo era real, a pura realidade! Poderia ser uma filmagem, sem meu consentimento, para ser usada em alguma peça publicitária em prol do restaurante R?   Olhei para os lados e não vi câmeras, nada, nada. Nem havia uma iluminação especial, também estava num canto, um lugar meio penumbroso do restaurante.

Enfim, o fato é que eu comecei a passar mal. No começo, um pequeno mal estar, depois uma dor muito estranha, lancinante. Imaginei na hora, era como se houvesse uma larga faixa de tecido bem grosso sobre meu abdomen, ela ia apertando e se movendo alternadamente para cada lado na minha indefesa e pobre barriga.  Teve um momento em que a pressão era tanta, que eu escorreguei da cadeira e quase que me estatelei no chão. Tinha comido aí como 1.600 gramas de peixe! Pensando bem, um pouco menos porque a oitava posta eu não encarei toda, só fora comida parcialmente. Então, a conta poderia dar um quilo e meio, Que cristão aguentaria isso? Nem aqueles cristãos fiéis seguidores de Jesus Cristo no famoso episódio da multiplicação dos peixes!   Acabei por me retirar aos poucos daquele local, sem muito disfarçar. Estava tão atarantado, que não me passou pela cabeça  pedir a conta. Também não vi nenhum sinal de algum funcionário vindo em meu encalço dentro do restaurante ou mesmo pela rua. Era a primeira vez que dava um calote na vida.

Deixei de subir aquela ladeira durante umas quatro semanas. Ainda  me sentia enjoado só de pensar naquela overdose de pescados, também me sobrevinha um terrível  enguio no estômago e uma vontade irresistível de vomitar,  ainda que no momento  meu estômago estivesse perfeitamente vazio. Findo esse período, comecei a sentir  um pouco de saudades do R. mas não era ainda vontade de comer aquelas iguarias, precisava aguardar um pouco.

Um belo  dia, meio sem querer, me vi aboletado naquela colina, bem em frente ao meu querido R.  Parece que a minha relação com ele era acima de qualquer incidente! No entanto, para minha surpresa, percebi que o restaurante estava fechado.  Tinha um pequeno burburinho em frente, algumas pessoas tentavam ler um papel colado na porta de enrolar. Parece que o fechamento ainda causava furor, isso depois de 2 semanas! Pensei, seria um aviso do falecimento de alguém, que estava impedindo a abertura naquele dia?  Se tivesse morrido o maître Leduc, seria a tragédia, a comida poderia  baixar de nível, seria o fim.  Logo em seguida, me ressenti, estava encarando o pobre Sr. Leduc somente como responsável pela boa cozinha e não como a pessoa que ele era.  Avancei para examinar melhor aquele pedaço de papel colado. Foi aí que eu vi estupefato que se tratava de uma ordem judicial, onde se determinava o fechamento do estabelecimento por conta de irregularidades encontradas. Quais eram? Não constava.  Até quando ficaria fechado? Sôfrego e com as pernas bambas, queria examinar aquele papel mais de perto,  até empurrei semi-bruscamente  para esquerda e para a direita um senhor e uma senhora, tinha que abrir o  meu caminho! Também a data do comunicado me chamou a atenção, tinha sido emitido no dia seguinte ao meu incidente da multiplicação; fiquei a pensar, o motivo da interdição teria que ver com saúde pública? Não conseguia acreditar, achava o local modelar, asséptico, exemplar. Inclusive, tinha sido convidado pelo Sr. Leduc para visitar a cozinha, não na hora que ele determinasse, mas oportunamente quando me desse na telha. Fiz uma verdadeira via crucis para descobrir algo, em tudo o que era repartição, nos órgãos da imprensa, nada.  Ninguém sabia nada a respeito.

Passou-se o tempo, eu já me sentindo acostumando com o fechamento definitivo das portas do R.,  quando tive um sonho muito pesado sobre aquela situação. E era assim, eu me encontrava numa fissura tão grande por peixe, que a ambientação do sonho só poderia ser no fundo do mar! Era tudo espantoso naquelas profundezas do oceano, tudo repleto de peixes e muitas outras criaturas, crustáceos, tartarugas, baleias e tubarões, Todos desfilavam à minha frente com seus tamanhos gigantescos, muito maiores do que os naturais.  Aquela área também era repleta de todo tipo de plantas aquáticas,  grandes e pequenas, todas intrincadas, a visibilidade era bem sofrível ali. Ao voltar a cabeça em direção à superfície, via apenas um estreito facho de luz, fraco, iluminando debilmente o local onde eu estava. Levou algum tempo para eu individuar cada criatura, no começo era um emaranhado  meio indefinido, por conta da escuridão, Com o tempo, tudo começou a ficar mais nítido. As criaturas circulavam em todas direções, muitas vezes se chocando entre si. Em meio a esse frenético trânsito de seres, um específico apareceu diante dos meus olhos, era uma lagosta, posicionada verticalmente, talvez tivesse algo como 2 metros. Movia suas garras com grande vigor,  parecia um grande inseto.  Pois bem, apurando meu olhar, logo percebi que a cabeça do animal era a do Sr. Leduc, e ele me dirigia um sorriso bem irônico! Todos os peixes andavam por ali, resolutos, todos com a cabeça do maître. Eram muitos dos que eu costumava comer no restaurante, badejos, chernes, namorados e tantos outros. 

Nos dias seguintes, fiquei às voltas com esse sonho intrigante. Porque fui  parar no fundo do mar?   Porque a cabeça do Sr, Leduc substituía as cabeças de todos os seres? Queria ele me punir? Ou talvez o contrario? Talvez o sonho quisesse me indicar que eu não precisava ser tão exageradamente entusiasmado assim com o Restaurante R. ou com os pescados em geral.. Talvez o sonho me quisesse indicar que eu poderia ampliar meus horizontes, desfrutar outras cozinhas, árabe, jasponesa, baiana. Mais coisas da terra, um belo baião de dois, uma boa feijoada ou a comida vegana. Moquecas nem tanto, porque ainda estaria no reino dos peixes.  Tantas alusões do sonho eu não conseguia decifrar totalmente. Apesar de tantas alusões ou sugestões, eu não conseguia decifrar totalmente. Talvez levando o caso a um psicanalista, uma opção difícil já que eu estava sem terapeuta no momento.

(Esse relato foi de um sonho. Adaptado, ampliado, revisado, além de floreado.  Alguém sabe afinal de contas porque o famoso Restaurante R.  foi fechado?)