“CARTA PARA UM JOVEM MICROPORO”

Esta que te escreve é a sua Mãe Esparadrapo. Sim, é isso mesmo, por favor não fique chocado,  sou a sua mãe verdadeira! Adoraria estar com você agora para te dar um abraço bem apertado, igualzinho a aqueles de fim de novela da TV, Sim, já que estamos falando de mãe e filho que só se encontram muito tarde na vida.  Disse muito tarde, mas não tarde demais, ainda teremos muito tempo para  conviver e se conhecer. Saiba que estou aqui emocionada, me debulhando em lágrimas, esse assunto me comove por demais.  Porque não te contei antes? Tinha medo da sua reação. medo de te causar um trauma, talvez você não acreditasse em mim. De mais a mais, tive notícias de que você estava muito feliz na família em que foi criado. Você há de me perguntar como se deu a nossa separação. Pois sim, logo depois que te dei a luz, uns enfermeiros da maternidade  julgaram que você, com o seu rolo menos largo e mais transparente, além da sua deslavada aparência de material sintético, não podia ser meu filho.  Como puderam eles me afastar de você?  Na verdade, o que aconteceu é que eles te acharam muito diferentão e não quiseram reconhecer que você pertencia também à nossa familia de adesivos hospitalares e também domésticos. Saiba que essa não foi a primeira vez que tiraram um filho de mim! Ai meu Deus isso foi triste, isso me revoltou. é o pior trauma que pode ser causado a uma mãe. No ano anterior ao seu nascimento, também estive grávida e pari uma caixa de Band Aid com 30 unidades!  Os funcionários também me interpretaram mal e levaram a caixa direto para descarte do hospítal e ela perdeu-se para sempre, foi horrível! Alegaram que aquele monstrinho não tinha absolutamente nada da minha aparência e que, para agravar a coisa, ainda tinha esse nome estranho que eles não conseguiram decifrar por nada neste mundo.  Pois então, reconheço que tanto você como o Band Aid  não são nada parecidos comigo,  Mas porque os meus filhos tem que se parecer só comigo? Será que eles não tem ideia do que sejam genes dominantes e recessivos?  São uns brutos. Sim, meu filho Microporo, dê notícias, me despeço ansiosa.

MEUS 3 SOBRADINHOS

Prédios cada vez mais altos por toda parte, tapando o horizonte e também a  história. Bairros sendo descaracterizados pela destruição incessante de valorosas construções antigas e preciosos. É como um desmonte da cidade sendo feito a toque de caixa, quase sempre para dar lugar a um monstrengo novo. A roda do dinheiro e dos “investimentos” não pode parar. Serviços públicos básicos darão conta de tantos novos apartamentos, às dúzias. às centenas, aos milhares? Um flyer (novo nome para o velho folheto) é distribuído por ali, anunciando o luxo e a grande oportunidade imperdível  de se fazer um ótimo investimento (ué, comprar um apartamento desses  não seria  para o interessado morar?)

Vejo daqui a  parte lateral de um prédio, talvez dos anos 50,  que está a uns  80 metros de distância. Esse lado em questão deve ter  40, 50 metros de comprimento quadra adentro, a parte frontal do prédio está numa rua transversal a esta aqui. A construção é toda revestida em tijolinhos avermelhados, deve ter algo como 8 andares e sei que serviu em outros tempos  a uma companhia telefônica e que provavelmente deve estar vazio,  pelo menos assim eu suponho.  Nesse paredão há muitas janelas, elas não acompanham a lógica de cada andar, são amplamente longilíneas, deixando ver o interior do prédio; quase um emaranhado de várias escadas. Há também uma grande escada externa, de cima a baixo, toda gradeada. Por fim, lá em cima, à esquerda, há um emaranhado de tubulações, talvez tenham a ver com uma uma tecnologia anterior da telefonia. Na outra extremidade, à direita, desponta uma torre bem alta de telefonia móvel, parece uma grande árvore de natal, com seus objetos decorativos pendurados, semelhantes a grandes pratos e panelas de metal presos a ela.

Um segundo prédio corre paralelo ao primeiro, também o vejo pela lateral, a uns 30 metros avançando em minha direção Tem a mesma extensão do primeiro, mas é mais baixo, deve ter o equivalente a uns 2 ou 3 andares, com grande pé direito. É todo em janelas muito grandes, na verdade basculantes. Posso dizer que  teria as características de um prédio fabril inglês. Num determinado trecho da construção, desponta o 3o. e o 4o. andares, com largura bem menor, uns 6 metros. No 3o. andar dessa espécie de mini torre, se vê uma abertura, que não é uma janela, é um oco.  À frente se vê um corrimão, vez ou outra chega alguém e se posiciona ali, parecendo contemplar a paisagem ou fazer um discurso, Pouco tempo depois, some de novo na escuridão.  Em quase toda a área do teto  há um jardim bem rasteiro, diretamente plantado sobre o concreto. Periodicamente, aparece uma mulher, munida de um enorme cesto, e se põe a estender roupas brancas, como camisões num varal que se estende até onde a minha vista alcança. São roupas intrigantes, porque todas brancas? Elas se abalofam sugestivamente pela ação do vento.

Avançando mais em minha direção. já à beira da minha rua, tem um conjunto de 3 lindos sobradinhos que estão em frente ao meu prédio. São de cor cinza e geminados, devendo ter algo como 80 anos de  idade, aproximadamente. Todos tem um elegante frontão no segundo andar, com um rendilhado em alto relevo em cimento. São como os milhares de sobradinhos típicos da cidade, muitos abrigavam descendentes de italianos, desde os tempos da migração.. A marcha da destruição desses imóveis tem sido bem rápida, vão sendo dizimados pouco a pouco,  perseguidos inclementemente pela voraz especulação imobiliária que os põem abaixo da noite para o dia. A cidade que não é conhecida pela  beleza, vai enfeiando gradativamente ainda mais.  Até quando vão resistir esses  meus três sobradinhos daqui da frente, que tanto enriquecem o  meu olhar? Tenho um sonho recorrente no qual os vejo arrasados, postos abaixo, para dar lugar a mais um altíssimo e  arrojado edifício de alto padrão. Meus sobradinhos são históricos e cheios de estilo;- já esses novos prédios modernosos que só poluem visualmente a cidade, o que são?  Sei que se houvesse uma política consequente de preservação do patrimônio, os sobradinhos jamais seriam demolidos. É pedir demais daqueles enseguerados por ver lucro.

 Um brechó ocupa o térreo do primeiro andar do primeiro sobrado mais à esquerda. Uma diligente e simpática senhora se esforça em manter tudo bem limpo e organizado. Já comprei roupas lá, entre elas uma camisa verde meio bufante, que eu tinha certeza que nunca iria usar. Às vezes faço uma espécie de inventário das roupas que eu tenho e essa camisa eu não encontro mais. Teria sido uma vingança por nunca tê-la usado? Em  algumas noites, não muito frequentes,  se abrem as 3 janelas do segundo andar para que vários casais pratiquem ali dança de salão, numa visão muito mágica. Nunca vi uma placa anunciando aulas,  por isso não creio que seja uma academia. Acho que são amigos que se encontram para dançar, mas nem sempre.

O segundo sobrado é ocupado por um estúdio de tatoo e por um sebo. Primeiro o estúdio: ele tem ares de centro cultural da tatuagem. Periodicamente, fazem lá movimentadas exposições com muitos desenhos pelas paredes para servir de modelo para as gravações. Em minúsculos quartinhos veem-se profissionais em acão, tudo muito iluminado e com música ao vivo. Animado. O sebo ocupa dois andares, o segundo e a escada que lhe dá acesso. Aí vem a coisa inquietante: a escada que não é muito convidativa. São centenas de livros agrupados em colunas apoiadas contra a parede, deixando só um pequeno espaço para se subir ao segundo andar. Nunca fui lá, esse segundo andar deve estar entupido de livros, até a tampa, um inaudito tema para um filme catástrofe. A invasão dos livros alienígenas ou coisa do gênero.

Terceiro sobrado: na parte de baixo, um cabeleireiro. Na parte de cima, também uma atividade comercial, mas lá com os seus mistérios.  As duas grandes janelas só se abrem em certas ocasiões, mais nos fins de tarde; nessas mesmas ocasiões, a porta em baixo permanece aberta. Lá em cima, reina uma cama de casal, sempre está sempre revestida por uma colcha vermelha ou creme, num capricho.  Vi diversas vezes homens em pé diante da casa, parados, parecendo meio ansiosos, sempre mexendo  com os seus celulares. Sempre há uma ação simultânea ai, é quando um desses homens entra pela porta escancarada subindo e a janela lá em cima se fecha.